Uma homenagem a Pedro Pinchas Geiger pelo Dia do Geógrafo
Defensor incansável da importância de uma abordagem interdisciplinar, destacando a necessidade de integrar diferentes áreas do conhecimento para uma compreensão ...
Muito se diz sobre a potencialidade que a inovação tem de se constituir como propulsora de crescimento econômico, mas cabe desvendar uma outra perspectiva, a de que a esta pode se apresentar, também, como importante componente das estratégias de desenvolvimento urbano que garantam o direito à cidade. Estratégias essas, claro, que se distanciam muito da perspectiva que considera a cidade como negócio, ou melhor dizendo, que entende que o urbano deve responder a um projeto econômico, fundamentadamente financeiro e imobiliário. Ao contrário, as estratégias de desenvolvimento urbano que podem garantir o direito à cidade se vinculam a um projeto social e político emancipatório das amarras do capital.
O desafio que se coloca nesse texto é o de pensar em que medida a inovação como integrante de um projeto social e político pode participar da construção do direito à cidade; ou seja, em que medida a inovação pode se constituir num componente das estratégias de desenvolvimento urbano que têm a potencialidade de garantir essa conquista.
Inicialmente, cabe fazer uma observação, a de como entendemos o direito à cidade, uma vez que essa expressão encontra múltiplas interpretações, presentes desde o pensamento mais radical até em documentos de órgãos internacionais. Entendemos o direito à cidade de uma perspectiva lefebvriana, que significa dizer que o compreendemos como um direito utopiano, ou seja, que exprime o sentido de que as necessidades sociais são possíveis de serem satisfeitas numa sociedade urbana.
Não se trata de entender o direito à cidade como utópico, imaginário, de natureza irrealizável e ideal; ao contrário, se trata de entendê-lo como possível. Daí o termo utopiano e não utópico. A diferença central é que a utopia, como Lefebvre esclarece, é o realizável concretamente, ainda que como um devir.
Refletir sobre a inovação como uma estratégia de desenvolvimento urbano que garanta o direito à cidade como integrante de um projeto social e político é a perspectiva central desse texto. Nesse sentido, buscamos evidenciar que a inovação deve ser entendida como um processo social de geração e implementação de práticas inovadoras no enfrentamento dos problemas e das condições de vida que afetam à sociedade.
Essa reflexão crítica implica se distanciar dos sentidos banais, aqueles carregados de imprecisões e generalizações, e das perspectivas mais convencionais que entendem a inovação restrita ao âmbito empresarial e das relações do capital.
Um dos sentidos mais conhecidos é a conotação rasa do que vem a ser inovação e com a significação neoliberal de empreendedorismo. A ideologia empreendedora constitui uma das principais estratégias do capital que, para ampliar o mais-valor, cria novas estratégias de exploração da classe trabalhadora, destruindo direitos e mobilizações coletivas, estimulando a competividade e individualismo nas relações de trabalho, promovendo a ideia de que sucesso profissional está centrado na imagem de um empreendedor de si.
As Smart Cities aparecem como uma solução urbana e são potencialmente inovadoras. Apresentam uma série de recursos tecnológicos como solucionadores de problemas cotidianos do urbano. Claro, o conjunto de quaisquer tecnologias presentes na chamada cidade inteligente pode melhorar as condições urbanas e aparece como novidade, mas isso não se confunde com inovação como se quer que se entenda. Nelas, o projeto visa produção de energia limpa, câmeras em piscinas que podem alertar para eventuais riscos aos usuários, sensores para monitorar o controle de poluição do ar, semáforos ajustados, transporte integrado, equipamentos de vigilância e segurança, iluminação otimizada, atendimento de emergência remoto, construções sustentáveis. Elas aparecem até mesmo como uma iniciativa que alia soluções inteligentes à inclusão social.
No entanto, na maior parte dos casos, estão longe de serem solução urbana, como querem apregoar e se utilizam da ideia de inovação como fetiche; de fato, nada mais são do que negócios imobiliários que se assenhoram de um nicho de mercado, revestem-no de novidades, aprofundam o problema e o tornam insolúvel.
Empreendedorismo e Smart Cities são exemplos de rótulos mistificadores que capturam mentes e compradores com os atrativos e abortam o conteúdo verdadeiro dissimulado pelos discursos. Esses atrativos fetichizados aparecem como inovação, mas são expressões de processos de alienação inevitavelmente mistificadores. Como disse Lefebvre, “fetichismo, alienação, mistificação são três termos quase equivalentes, três aspectos de um só fato. Eles nos permitem compreender a unidade complexa da economia e das formações ideológicas”.
Acima de tudo, essa tríade lefebvriana – fetichismo, alienação e mistificação – se constituem em armadilhas que nos impedem de ver o que está por trás da aparência dos lugares, dos discursos e das práticas sociais. A consciência mistificada é a antítese das possibilidades de se pensar alternativas emancipatórias, de se compreender o mundo para o transformar não em um outro mundo capitalista, mas em um outro mundo possível. Um vir a ser em que a inovação se coloca como projeto de emancipação e prática de realização de direitos.
Deve-se levar em conta que o contexto atual não é simplesmente de um neoliberalismo caracterizado pela diminuição da intervenção pública, pela desregulação dos mercados, pelas privatizações, dentre tantos aspectos conhecidos desde as últimas décadas do século passado. Cada vez mais, as propostas neoliberais buscam se mostrar moralizantes e com tom ético e, além do mais, preocupadas com a responsabilidade das empresas e objetivando desenvolver uma economia do saber e da inovação. A solidariedade e o combate à pobreza constituem sua faceta moralizante e filantrópica, mas a questão chave e estrutural, a da desigualdade, fica submersa nas proposições.
Esse é o contexto em que temos que projetar a construção de um mundo possível que, no que diz respeito ao urbano, restitua o direito à cidade como um direito utopiano. Um mundo em que a inovação possa se constituir num elemento das estratégias de desenvolvimento urbano e, nesse sentido, socialmente instituinte de um projeto social e político de desenvolvimento urbano que tem a potencialidade de garantir o direito à cidade.
Embora seja um conceito polissêmico, com sentido até mesmo banal ou carregado de imprecisões e generalizações, cuja origem se situa no mundo empresarial, têm sido presente de forma recorrente nos debates nacionais e internacionais sobre desenvolvimento. Também o tema da inovação se faz corrente na atuação do terceiro setor como elemento constituinte de políticas públicas e como participante de ações diretamente desenvolvidas pelo Estado. Algumas delas se apresentam como inovações sociais, mas, quando embebidas no paradigma neoliberal, são regressivas e têm poucas possibilidades de contribuir para a transformação e justiça social.
O neoliberalismo, com a recorrente apologia ao empreendedorismo na exacerbação do individualismo, da competitividade e no esgarçamento de solidariedades, busca se apresentar ético, assistencialista e filantrópico. Trata-se apenas da aparência moralizante da lógica liberal que o neoliberalismo atualizou com requintes jamais imaginados e dissimulados na sua versão atual.
A inovação posta como fetiche, como encantamento, acompanhada da alienação, que, como disse Lefebvre, é a dificuldade de realizar o possível e da mistificação, como um embuste ou mentira que muitos acreditam, jamais foi tão real. A superação do fetiche, da alienação e da mistificação abre o caminho para a conscientização. É preciso, assim, caminhar em direção a construção do possível.
Vivemos tempos sombrios nos quais a inovação, desvinculada das amarras constrangedoras e imperiais do neoliberalismo, tem a potencialidade de contribuir para a superação dos problemas sociais se constituindo como participante de um projeto social e político na construção do direito à cidade. Uma cidade como produção e espaço do possível e, portanto, como espaço que se constrói na prática emancipatória.
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