A criação de materiais avançados tem proporcionado o desenvolvimento de novos sistemas estruturais para engenharia, medicina, aeronáutica, dentre outras áreas. Os chamados materiais inteligentes, adaptativos ou ativos representam uma das principais iniciativas nesse sentido, sendo caracterizados por um acoplamento multifísico que proporciona capacidade de adaptação ao ambiente em que estão inseridos. O acoplamento multifísico conecta dois ou mais domínios físicos (mecânico, térmico, elétrico, magnético, entre outros) o que permite alterações de propriedades ou forma (Lagoudas, 2008; Leo, 2007; Oliveira & Savi, 2013).
As ligas com memória de forma (SMAs) são materiais inteligentes que vêm ganhando destaque nos últimos anos devido às suas notáveis propriedades. Esses materiais possuem como característica principal a capacidade de recuperar uma forma previamente definida através da imposição de carregamentos mecânicos e/ou térmicos apropriados. A existência desses materiais foi primeiramente reportada em 1932, com a descoberta do efeito memória de forma em ligas Au-Cd pelo pesquisador sueco Gustav A. Ölander. No entanto, somente a partir da década de 1960, começou a despertar interesse tecnológico nos comportamentos associados às SMAs. Em 1963, o pesquisador americano William J. Buehler e seus colaboradores descobriram o efeito memória de forma em ligas Ni-Ti, o que levou ao uso desses materiais em uma série de aplicações. Apesar de existirem diversas ligas que possuem o efeito memória de forma, como por exemplo Au-Cd, Cu-Zn, Cu-Al, Cu-Sn e Cu-Zn-Al, as ligas Ni-Ti são as mais utilizadas em diferentes aplicações devido às suas boas propriedades mecânicas e metalúrgicas, tais como biocompatibilidade e resistência à fadiga e à corrosão.
As notáveis propriedades das ligas com memória de forma estão associadas às transformações de fase sólidas responsáveis por diferentes comportamentos termomecânicos. Esses materiais possuem duas fases microconstituintes: a austenita, estável a altas temperaturas e livre de tensões; e a martensita, estável a baixas temperaturas e livre de tensões. As transformações de fase podem ser induzidas por tensão e/ou por temperatura. Quando a martensita é induzida por temperatura ela é denominada martensita maclada. Por outro lado, a formação martensítica induzida por carregamentos de tensão é chamada de martensita não maclada.
A imposição de diferentes campos de tensão, temperatura ou uma combinação dos dois gera uma série de comportamentos termomecânicos nas ligas com memória de forma, dentre eles, a pseudoelasticidade e o efeito memória de forma. Para apresentar as principais ideias relacionadas a esses fenômenos, considere inicialmente o efeito pseudoelástico (Figura 1). Considere para isso uma amostra SMA em alta temperatura e livre de tensão. Nessa condição, a amostra encontra-se na fase austenítica, e um carregamento mecânico induz uma transformação de fase em martensita não maclada. Cessando o carregamento, ocorre uma transformação de fase inversa e o material volta à sua condição inicial. Esse processo está associado a um ciclo de histerese que representa a energia dissipada durante as transformações de fase.
Considere agora o efeito de memória de forma (Figura 1) em que a amostra está em uma temperatura mais baixa e livre de tensões, apresentando a fase martensita maclada. A aplicação de um carregamento mecânico induz uma reorientação formando a martensita não maclada. Quando a amostra é descarregada, existe uma deformação residual. Um aumento de temperatura subsequente induz uma transformação da fase de martensita para austenita o que elimina a deformação residual e, portanto, recuperando a forma original. A Figura 1 ilustra os dois efeitos, mostrando as mudanças que ocorrem na microestrutura, assim como as suas manifestações macroscópicas representadas por curvas tensão-deformação (pseudoelasticidade) e tensão-deformação-temperatura (efeito memória de forma).
Aplicações
As ligas com memória de forma possuem um potencial significativo de aplicações em diversas áreas, como por exemplo, biomédica, aeroespacial, automotiva, robótica, dentre outras. Nesse sentido é possível encontrar revisões detalhadas sobre as principais aplicações desenvolvidas a partir desses materiais em trabalhos como Nair et al. (2022), Oliveira & Savi (2013), Jani et al. (2013), Machado & Savi (2003) e Saadat et al. (2002).
Considerando a área biomédica, as SMAs são atualmente empregadas em instrumentos cirúrgicos, cardiovasculares, aparelhos ortodônticos, dentre outros. A Figura 2 traz exemplos de alguns dispositivos de SMA empregados nessa área. Esses dispositivos exploram o efeito memória de forma e a pseudoelasticidade e tem como principais atributos a biocompatibilidade, resistência à fadiga e à corrosão, proporcionando procedimentos não invasivos.
Aplicações na indústria aeroespacial utilizam as ligas com memória de forma em uma série de dispositivos aplicados em aeronaves, satélites, veículos espaciais, trazendo benefícios em relação aos materiais convencionais por serem mais resistentes, leves e seguras, além de propriedades de auto expansão. A Figura 3 mostra um mapa dos pontos onde esses materiais são potencialmente aplicáveis na indústria da aviação.
Na indústria automotiva, as SMAs estão sendo utilizadas em aplicações como sensores de temperatura, persianas de radiadores, válvulas de controle e aplicações aerodinâmicas (aerofólios e flaps). Na robótica as SMAs são utilizadas em próteses, micro atuadores, sistemas que imitam o movimento de seres vivos, robôs utilizados em operações militares e submarinas, dentre outros. Além disso, a capacidade de dissipar energia e de recuperar grandes deformações, tornam esses materiais com grande potencial para aplicações dinâmicas como a atenuação de vibrações. Equipamentos mecânicos, dispositivos expostos a cargas de impacto e estruturas submetidas a cargas sísmicas são alguns exemplos.
Modelagem Matemática
Devido ao grande número de aplicações e aos complexos fenômenos envolvidos, o estudo das ligas com memória de forma possui uma grande relevância científica e tecnológica. A modelagem matemática do comportamento termomecânico das SMAs é um grande desafio envolvendo uma série de investigações para propor modelos, algoritmos para simulação numérica e experimentos. Alguns artigos científicos estão disponíveis na literatura apresentam uma revisão sobre a modelagem constitutiva de SMAs, destacando-se por exemplo, Paiva & Savi (2006) e Cisse et al. (2016).
Em geral, as aplicações envolvendo as SMAs estão associadas a carregamentos cíclicos que precisam ser bem compreendidos. Isso induz a fadiga do material, o que tem se tornado o grande desafio atual na modelagem das SMAs. Fadiga pode ser definida como a degradação progressiva de um material submetido a carregamentos cíclicos, sendo usualmente classificada em fadiga de baixo ciclo, quando o material acumula deformações plásticas, e fadiga de alto ciclo, quando o material sofre apenas deformações elásticas. Além desse tipo de fadiga estrutural, as ligas com memória de forma ainda apresentam uma fadiga funcional relacionada à redução das propriedades funcionais, como por exemplo, a capacidade de transformação de fase e de dissipar energia (Eggeler et al., 2004). A Figura 4(a) ilustra a fadiga estrutural em uma liga Ni-Ti através de uma micrografia mostrando os estágios de degradação até a falha. Por outro lado, A Figura 4(b) mostra a evolução de uma curva tensão-deformação com o aumento do número de ciclos de carregamento mecânico onde é possível observar uma redução das propriedades funcionais do material com aumento do número de ciclos.
Considerando uma abordagem macroscópica, Dornelas et al. (2021) desenvolveram um modelo tridimensional capaz de descrever o comportamento termomecânico geral das ligas com memória de forma, incluindo a fadiga funcional e estrutural. A comparação com resultados experimentais mostra que o modelo possui a capacidade de representar a maioria dos comportamentos termomecânicos das SMAs, sendo útil para ser empregado no projeto de novos dispositivos inteligentes.
A Figura 5 mostra uma comparação de resultados numéricos e experimentais considerando um ensaio de fadiga em regime pseudoelástico sem apresentar plasticidade clássica e portanto, sem atingir a superfície de escoamento. Destacam-se dois ciclos em meio a todo o carregamento para ilustrar o comportamento do material ao longo de todo o ensaio. A Figura 5(a) mostra o comparativo para o primeiro ciclo, enquanto a Figura 5(b) mostra a comparação para o último ciclo, antes da falha. Os resultados apresentam uma boa concordância, especialmente considerando os fenômenos altamente não lineares envolvidos. A falha também é prevista de forma adequada, apresentando uma variação de aproximadamente 1% em relação ao resultado experimental.
Na sequência apresenta-se um ensaio de fadiga pseudoelástico em que a plasticidade clássica está presente. A Figura 6 apresenta o comparativo numérico-experimental destacando dois ciclos ao longo do teste. A Figura 6(a) mostra o primeiro ciclo, enquanto a Figura 6(b) mostra o último ciclo antes da falha. Mas uma vez os resultados apresentam boa concordância, mas a falha do material apresenta uma variação de aproximadamente 17% em relação ao resultado experimental.
Os resultados apresentados mostram a capacidade do modelo de descrever o comportamento termomecânico das SMAs considerando uma série de fenômenos, incluindo a fadiga. Além disso, deve-se destacar a boa previsão da vida em fadiga para diferentes condições de carregamento. Esses bons resultados credenciam o modelo matemático para ser aplicado no desenvolvimento de inovações tecnológicas.