Com o agravamento da crise climática provocada pelo aquecimento global, os desastres se multiplicam, sobretudo em zonas tradicionalmente de grande risco, já com histórico anterior de tragédias. O Estado do Rio de Janeiro, com suas encostas ocupadas desordenadamente, é alvo preferencial. Sabemos que os acidentes se repetirão, com maior frequência e obedecendo a prazos mais curtos. Se não encontrarmos instrumentos para evitá-los, podemos, ao menos, amenizar esses eventos e suas consequências. A engenharia brasileira tem profissionais, recursos, conhecimento e notável experiência, que a qualificam para isso.
Vivemos um período difícil e muito triste, ao nos depararmos, mais uma vez, com os efeitos negativos das águas de verão sobre as cidades vitimadas e seus habitantes. O momento é de procurar assistir, de todas as maneiras, as vítimas, cuidando de sua saúde, não só física, mas também psicológica. Precisamos reconstruir os patrimônios abalados ou arruinados e retomar os padrões de vida prejudicados pelas tragédias. Não é o caso de se priorizar a definição de culpados e muito menos de julgamentos precipitados. Há coisas mais importantes, nesse momento dramático, do que culpar as autoridades, municipais, estaduais ou federais, e tampouco de responsabilizar os moradores por ocuparem, legal ou ilegalmente, os terrenos ou não cuidarem tecnicamente da implantação de suas moradias.
O momento é de reflexão, de aprendermos com as lições da catástrofe e de planejar o futuro das construções habitacionais em encostas e também das estradas, que cortam os morros, abrem túneis e criam aterros instáveis, para implantação de pistas em que se possa trafegar, escoar a produção e fazê-la chegar ao destino com segurança.
No âmbito apenas dos deslizamentos, sem incluir os problemas das enchentes, vale lembrar as alternativas de que se dispõe. Em primeiro lugar, evitar, sempre que possível, as alterações na geometria ofertada pela natureza e, quando for imprescindível ocupar terrenos íngremes, criar aterros ou cortar encostas, é preciso, antes de tudo, estudá-las geológica e geotecnicamente. Se esses estudos concluírem que a encosta é estável, é preciso, na sua ocupação, a montante ou a jusante, manter essa estabilidade através de ações preventivas. É o que chamo de tratamento passivo, e se restringe à proteção do terreno superficial (plantio de grama, pintura impermeabilizante), somada a eventuais suavizações leves, onde necessárias e se forem viáveis.
Quando, ao contrário, os estudos indicarem instabilidade iminente, o tratamento é o que chamo de ativo e compreende as chamadas obras de estabilização ou arrimos, complementadas por sistemas de drenagem superficial e profunda, que devem ser projetadas e construídas por entidades especializadas, sob fiscalização técnica de órgãos públicos competentes. A definição quanto à estabilidade advém dos mapeamentos geológico e geotécnico, que permitem a avaliação dos níveis de risco. As administrações municipais, a despeito de serem as responsáveis legais e, portanto, as que concedem licenças de obras, não têm, em geral, estruturas técnicas e também condições financeiras para bancar os mapeamentos citados e, muito menos, os estudos geotécnicos. Como exceção, pode-se citar a Geo-Rio, no Rio de Janeiro, e em Hong Kong, com geologia e topografia semelhantes, existe uma entidade similar.
No âmbito das enchentes, vale lembrar que as mesmas águas pluviais que produzem os escorregamentos de terra pela saturação dos solos, aumentando seu peso, como também reduzindo a zero a resistência ao escorregamento, quando em excesso e insuficientemente drenadas, podem provocar também alagamentos, em outras áreas, com consequências trágicas.
Gosto de citar a situação da cidade do Rio de Janeiro, onde a não conclusão das obras do Túnel Extravasor, projeto elaborado na década de 70 pela antiga SURSAN, tem causado alagamentos e enchentes em diversos pontos vulneráveis da metrópole. Lembro que no passado os Departamentos Nacionais de Obras de Saneamento – DNOS e de proteção contra as secas, DNOCS, por exemplo, eram federais, com subsidiárias nos estados mais carentes. Esse conceito de instituição nos parece muito adequado para a atual conjuntura, na qual prevalecem a falta de recursos e grande dispersão de esforços na busca de soluções.
Assim, acho que o momento é de pensarmos uma instância de âmbito nacional para enfrentar os problemas, conforme propus à Presidência da República, quando ocupei a presidência do Clube de Engenharia, no período de 2009 a 2015. Trata-se da criação de um instrumento nacional de proteção contra os escorregamentos de encostas, as enchentes e alagamentos, bem como de sua mitigação quando ocorridos. Essa instituição, subordinada a um Ministério, atuaria principalmente nos Estados mais problemáticos. A sinergia seria total. Além disso, é sempre bom lembrar que é melhor prevenir do que remediar. Afinal, o que está em jogo são a saúde e o dinheiro do contribuinte.
Voltando agora, especificamente, à questão das enchentes, quero detalhar melhor o tema do Túnel Extravasor, projeto que chegou a ser iniciado em 1971, no Governo Negrão de Lima, pelo engenheiro Raymundo de Paula Soares, e, posteriormente, foi paralisado por falta de verba. Depois de uma atualização, o mesmo projeto foi retomado, e, novamente, interrompido em 1989.
No primeiro semestre de 2010, o projeto foi encaminhado, novamente, ao então prefeito Eduardo Paes, para a implementação do Túnel Extravasor em caráter de emergência. A concepção do projeto do Túnel Extravasor tem por base a captação das águas excedentes, que transbordam nas calhas dos rios Maracanã, Joana, Trapicheiro, Comprido e Papa-Couve, e seu transporte através de um túnel, para despejo final em mar aberto, no costão do Vidigal.
É importantíssimo observar que três desses rios, Trapicheiros, Maracanã e Comprido, deságuam no Canal do Mangue, que tem destino final na Baía de Guanabara. Quando transbordam, inundam toda a região do Maracanã e, por gravidade, as águas se deslocam pela superfície e inundam a Praça da Bandeira. Há registros de inundações ocorridas no início do século XX. O Rio dos Macacos é o responsável pelas repetidas inundações do Jardim Botânico. Esse rio deságua na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde também temos registros muito antigos de enchentes. Os rios Rainha I e Rainha II são os responsáveis pelas inundações na Praça Sibélius junto à PUC. Sua nascente se localiza na chamada Rocinha (vertente Lagoa), dividindo-se em dois córregos no vale da PUC. Há grande perda de carga ao tomar a direção da Rua Visconde de Albuquerque, sentido Praia do Leblon, onde deságua.
O Túnel Extravasor tem como objetivo a transferência, diretamente para o mar, das águas excedentes que inundam logradouros já sobejamente conhecidos como locais sujeitos às enchentes na cidade do Rio de Janeiro. Reparem o histórico deste tão importante projeto. Já há aproximadamente 1,5 quilômetro de escavação em rocha. A frente do túnel situa-se sob a Rua Marquês de São Vicente, mas, infelizmente, o projeto do Túnel Extravasor ficou anos esquecido. Outras soluções entraram em discussão, como piscinões e pequenos túneis, para conduzir as águas excessivas ao Canal do Mangue e ao Cais do Porto, ambos sujeitos à influência das marés altas, que podem reduzir e até frear o escoamento. São soluções parciais. A solução definitiva para o problema das enchentes é o Túnel Extravasor e se espera que seja concluído.
Vale novamente analisar problemas antigos crônicos, que influenciaram, direta ou indiretamente, a ocupação desordenada dos morros e das calhas inundáveis dos mananciais e cursos d’águas, por carências diversas dos menos favorecidos. Há muitos anos foi criado o FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, recolhido de patrões/empregados, destinado para ser aplicado, a fundo perdido, em Habitação e Saneamento Básico, com ênfase para as áreas mais carentes. Criou-se para administrá-lo o BNH – Banco Nacional de Habitação, que foi fechado em pleno governo do Presidente Sarney, passando todas as suas atribuições à Caixa Econômica Federal, que desacelerou e quase estancou os processos em curso. Outro fator que há muitas décadas influi negativamente sobre os problemas de urbanização é a deficiência crônica nos transportes urbanos. Assim, torna-se melhor morar mal, mesmo em morros, desde que se esteja próximo do local de trabalho.
As chamadas décadas perdidas reduziram os empregos, fazendo com que os pobres não pudessem sequer arcar com aluguéis de habitações decentes. Iniciativas periódicas apareceram ao longo dos anos em diversas fases da nossa história. Em 1994, por exemplo, o governo do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio da CEF e do BIRD, contratou o chamado Plano de Reconstrução Rio – Subprojeto de Proteção de Encostas, onde uma empresa de consultoria, estudos e projetos, em cooperação com a UERJ, procedeu ao diagnóstico das necessidades de alguns municípios, inclusive da Região Serrana. O plano era abrangente e incluía ações educativas nas comunidades para redução de riscos. Entretanto, a alternância no poder executivo, as divergências políticas e as ambições eleitoreiras acabaram por engavetar
este e vários outros projetos importantes que poderiam ter sido implantados, minimizando futuras catástrofes.
Na cidade do Rio de Janeiro, conseguiu-se evoluir progressivamente na questão das encostas. O Sistema Alerta-Rio tem mapeadas diversas áreas de risco e dispõe de rede de pluviômetros capazes de prever condições de alerta. Com base na intensidade das precipitações, o sistema analisa os dados e identifica automaticamente os locais com perigo de escorregamentos. Pode-se, assim, providenciar a evacuação de áreas antes que as enxurradas façam seus periódicos estragos. Mesmo assim, o poder público não tem sido capaz de acompanhar a aceleração da velocidade de crescimento da ocupação desordenada das várias encostas cariocas onde novas áreas de risco surgem nas comunidades de baixa renda instaladas nos morros.
As inovações tecnológicas podem dar subsídios para o enfrentamento desse problema. Já se encontra metodologia que alia conhecimento e tecnologias de aquisição de dados remotos e em tempo real, capaz de produzir mapas de riscos geológico-geotécnicos, mapas de consequências (danos provocados por escorregamentos) e de detalhamento de potenciais áreas de fontes de detritos de alta confiabilidade que, integrados, permitem nortear as políticas de ocupação urbana e planejar a prevenção ou mitigação de futuros deslizamentos. Por outro lado, a fiscalização é deficiente, as ações judiciais são lentas, e as encostas continuam vítimas de desmatamentos criminosos que lhes retiram a proteção natural. Várias iniciativas vêm sendo também empreendidas no sentido de sensibilizar o poder público quanto à necessidade de tornar abrangentes, a todo o Estado do Rio, as ações voltadas à detecção e proteção de áreas de risco.
Para finalizar, quero tocar em um ponto fundamental para o Brasil: Educação. Os desastres naturais nos países em desenvolvimento deixam consequências muito mais dramáticas em relação a perdas de vidas humanas, do que os que acontecem nos países desenvolvidos. Isto está diretamente relacionado com o fator Educação dos povos. A tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011, para não citar diversas anteriores, assim como a de Petrópolis, neste fevereiro de 2022, tornam-se alerta especial a todos os brasileiros. Desta vez sequer foram poupadas as classes abastadas. Seus sobreviventes assistiram impotentes à destruição de casas e prédios construídos com padrões de classe média alta, que pareciam seguros. Muito pior, sofreram a perda de entes queridos sob a força da enxurrada mortal.
Engenheiros que como eu atuam também na Educação sabem o quanto as ciências ligadas à Engenharia evoluem ao investigar, analisar e interpretar as causas dos grandes acidentes. A impetuosidade da natureza e os sucessivos erros humanos cometidos por muitas gerações, durante a ingerência cega do poder constituído, foram os ingredientes de mais essa receita de desastre nacional.
É imperioso que se inclua a responsabilidade do fator Educação nas ações que ora estão sendo discutidas à luz da Engenharia Geotécnica, da Geologia e da Geografia, por profissionais destas áreas, juntamente com ecologistas, visando à elaboração do plano nacional de prevenção de tragédias. A educação de qualidade precisa passar a ser verdadeiramente obrigatória, de maior abrangência e encarada como dever inexorável do Estado.
Pessoas que gozam do privilégio de ter desfrutado de boa educação são mais capacitadas a compreender os problemas das áreas de risco para, inicialmente, não ocupá-las ou, caso o façam, abandoná-las em tempo hábil nas emergências, em atitude racional de preservação da vida. As carências na Educação Pública, aquela que atinge as massas e define a nação, estão entre os principais males a combater dentro do contexto das tragédias ambientais, sejam causadas por intempéries, sismos ou contaminação industrial. De nada adiantará apenas recuperar áreas degradadas, legislar e tentar fiscalizar sua ocupação se, paralelamente, não se educar o morador local para que seja também agente de preservação.
É fundamental evacuar totalmente as áreas de alto risco, tanto as inundáveis nas calhas dos rios, quanto aquelas em encostas com potencial de instabilidade. Ambas são identificáveis, a Engenharia e a Geologia sabem como mapeá-las. Um povo educado aceita, compreende e acata os planos de prevenção e de emergência. Precisamos lutar para elevar o nível da escolaridade em nosso País, ou teremos, infelizmente, que declinar do destino de grande nação por força do crescimento incontrolável da ignorância. A Educação como meta prioritária é nosso sonho maior de brasileiro.
*Este artigo também foi publicado no site Brasil 247.
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